Vivemos tempos estranhos: ninguém mais nos dá ordens diretas, mas todos sentimos que estamos sob pressão o tempo inteiro.
Trabalhamos mais do que nunca, estudamos mais, produzimos mais — e ainda assim, parece que nunca é o bastante.
O nome desse fenômeno é “sociedade do desempenho”, conceito criado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.
Ele descreve como o ideal moderno de liberdade e superação acabou se transformando em uma nova forma de opressão — sutil, silenciosa e internalizada.
Do “dever” ao “poder”: a metamorfose da escravidão moderna
Nas sociedades industriais, o indivíduo era disciplinado pelo dever.
Havia uma figura de autoridade clara — o chefe, o pai, o professor, o Estado — que dizia o que podia ou não ser feito.
Hoje, esse controle desapareceu da forma explícita.
Mas algo muito mais poderoso tomou seu lugar: a obrigação de ser livre.
Não precisamos mais que nos mandem trabalhar.
Agora, trabalhamos por conta própria — movidos pelo desejo de “vencer na vida”, “empreender”, “melhorar a si mesmo”.
A antiga voz de comando virou um sussurro interno: “você pode mais”, “você ainda não chegou lá”.
O resultado? Uma multidão de pessoas exaustas, ansiosas e em constante autoacusação.
Somos prisioneiros do próprio potencial.
O culto da produtividade e o mito do sucesso
A sociedade pós-moderna transformou a produtividade em virtude moral.
A ociosidade é vista como fracasso, o descanso como culpa, e a lentidão como fraqueza.
Dormir bem virou um luxo. Ter tempo livre virou um pecado.
As redes sociais intensificaram esse ciclo.
Vivemos cercados de exemplos de “sucesso” — pessoas aparentemente perfeitas, felizes e realizadas.
Comparar-se tornou-se inevitável.
E quanto mais nos comparamos, mais sentimos que estamos atrasados.
A meritocracia virou religião.
E o altar dessa fé é o burnout: o sacrifício do corpo e da mente em nome de uma glória que nunca chega.
A ansiedade como sintoma do sistema

A ansiedade não é apenas um problema individual — é o sintoma coletivo de uma estrutura doentia.
Quando tudo depende de nós, quando todo fracasso é culpa pessoal, o peso se torna insuportável.
Byung-Chul Han chama isso de “autoexploração”.
Não precisamos mais de patrões autoritários, porque nós mesmos nos tornamos nossos carrascos.
E o mais perverso é que acreditamos estar sendo livres enquanto nos destruímos.
Vivemos num paradoxo cruel:
somos “donos do próprio tempo”, mas nunca tivemos tão pouco tempo de verdade.
Estamos “conectados com o mundo inteiro”, mas cada vez mais desconectados de nós mesmos.
A tirania da positividade
Outra marca da sociedade do desempenho é a proibição do sofrimento.
Vivemos cercados por discursos de autoajuda, motivação e otimismo tóxico.
Ser triste é quase uma falha moral; sentir-se exausto é sinal de fraqueza.
O mercado transformou a felicidade em produto e o autoconhecimento em serviço.
Mas a consequência disso é grave: negamos a dor, fingimos plenitude e escondemos o cansaço.
E o que é reprimido, mais cedo ou mais tarde, explode — em forma de depressão, ansiedade ou apatia.
A sociedade da positividade nos diz: “Você pode tudo!”.
Mas o que ela realmente quer dizer é: “Você está por sua conta.”
O corpo e a mente em colapso
As doenças do século XX eram infecciosas.
As do século XXI são emocionais.
Depressão, síndrome do pânico, fadiga crônica e distúrbios de atenção explodiram em escala global.
E não é coincidência: são sintomas de uma civilização que perdeu o ritmo natural da vida.
O corpo humano não foi feito para estar disponível 24 horas por dia.
Nem a mente foi projetada para lidar com tanta comparação, notificação e estímulo constante.
Mas, em vez de questionar o sistema que nos adoece, buscamos remédios para continuar funcionando dentro dele.
Tentamos curar com produtividade aquilo que foi causado pelo próprio excesso de produtividade.
O preço da hiperliberdade
A sociedade do desempenho é, em essência, a sociedade do “poder sem limites”.
Mas o excesso de liberdade, quando mal compreendido, se torna um fardo.
Se tudo é possível, então tudo é responsabilidade nossa.
E essa lógica — aparentemente empoderadora — destrói silenciosamente nossa saúde mental.
A liberdade sem propósito vira tirania.
E o indivíduo, ao tentar se libertar de todas as estruturas, acaba escravo de si mesmo.
O despertar: desacelerar para existir
Resistir à lógica do desempenho é um ato de coragem.
Significa aceitar a imperfeição, desacelerar o ritmo e se reconectar com o real.
É entender que não somos máquinas de produção, mas seres humanos — feitos de limites, pausas e silêncios.
O verdadeiro sucesso talvez não esteja em “chegar lá”, mas em aprender a estar aqui.
Em viver de forma mais presente, mais consciente e menos programada.
Em recuperar o direito de simplesmente ser.
Como escreveu Bauman, “num mundo líquido, o que mais precisamos é de ilhas firmes”.
Talvez o maior gesto de revolução hoje seja reaprender a descansar, refletir e respirar — sem culpa.
A sociedade do desempenho transformou a liberdade em prisão e o sucesso em fardo.
Mas é justamente no reconhecimento dessa ilusão que nasce o verdadeiro despertar.
O futuro será daqueles que compreenderem que produtividade não é sinônimo de valor,
e que o mais alto desempenho que podemos alcançar é viver em paz consigo mesmos.



